Artigo

Guerras, Epidemias e a Bússola Moral

Por Pedro E. Almeida da Silva - professor Titular da Furg, Bolsista de Produtividade do CNPq

A história tem mostrado uma forte relação entre as guerras e o risco de epidemias. Durante os séculos 15 a 17, a Europa testemunhou um período particularmente violento, no qual ocorreu significativo aumento nas taxas de incidência de diversas doenças infecciosas, sendo a peste negra, causada pela bactéria Yersinia pestis, particularmente letal. As migrações e aglomerações favoreceram a disseminação das pulgas portadoras do microrganismo, enquanto o adoecimento era intensificado pelo frio, desnutrição e péssimas condições de vida e saúde. Este cenário, aliado à ausência de antimicrobianos, que só se tornariam disponíveis no século 20, tornou a morte praticamente inevitável em muitos casos.

As guerras são propícias à propagação de patógenos, resultando em um aumento significativo na morbidade e mortalidade da população. A fadiga, desnutrição, ferimentos e estresse são conhecidos por comprometer as respostas imunológicas, especialmente em condições de vida precárias, como aquelas encontradas em acampamentos de refugiados ou campos de concentração.

Em um recente artigo publicado no site de notícias Truthout, a jornalista Sharon Zhang relatou que as autoridades de saúde em Gaza informaram que, até março de 2024, ocorreram cerca de um milhão de casos de doenças infecciosas na região. Isso está ocorrendo em meio a uma crise humanitária sem precedentes, devido ao bloqueio de acesso a suprimentos básicos, como alimentos, água, eletricidade, medicamentos e itens de higiene. Doenças como diarreia, varicela e infecções respiratórias têm se disseminado de forma alarmante.

Os bombardeios em Gaza resultaram na destruição de hospitais e na perda de centenas de profissionais de saúde. Os principais centros médicos foram alvejados, deixando apenas 14 dos 36 hospitais parcialmente operacionais, o que resultou em um colapso sem precedentes no sistema de saúde local. Até o momento, aproximadamente 30 mil palestinos perderam a vida, com cerca de 70% sendo mulheres e crianças. Os ataques contra a população de Gaza têm causado uma média de seis óbitos de crianças por dia, um número extremamente elevado se comparado aos conflitos na Síria (3/dia) e na Ucrânia (0,7/dia).

A Unicef relata que o número total de crianças mortas já ultrapassou cinco mil, todas elas vítimas inocentes dos ataques bélicos e do cruel bloqueio às ajudas humanitárias. Além disso, dois milhões de pessoas foram deslocadas internamente, levando a previsões ainda mais sombrias, como a feita pelo professor de Saúde Pública Devi Sridhar, da Universidade de Edimburgo, que estima que em um ano possa ocorrer a morte de um quarto da população de Gaza devido a surtos de doenças infecciosas.

Essa devastação vai além de uma "quase" inominável crise humanitária; é um alerta contundente para a fragilidade das mediações da ONU e para a incapacidade ou, o mais provável, desinteresse para encontrar soluções razoáveis que mitiguem o sofrimento da população civil de Gaza. Mas, acima de tudo, revela uma séria falha na bússola moral da humanidade, num cenário onde surge a sombra da peste descrita pelo escritor Albert Camus: "A peste que nos assola é, sobretudo, a do vírus do ódio e da indiferença aos pobres. O flagelo que nos açoita é a morte como projeto político, o caos e o obscurantismo visando restaurar um regime político de terror".

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